Especialistas ouvidos pelo IT Forum elogiam iniciativa do Banco Central, mas adoção de moeda digital ainda deve demorar e é cercada de incertezas

Por  Marcelo Gimenes Vieira

Se você utiliza cartão de créditodébito ou meios de pagamento digitais – como o PIX – com muito mais frequência do que segura uma nota de dinheiro, deve ter ficado se perguntando que mudanças traz o conjunto de diretrizes anunciadas essa semana pelo Banco Central brasileiro. Afinal, o que significa um “real digital”? E qual a diferença dele para o nosso dinheiro já tão digitalizado?

Isso para não falar das criptomoedas como o Bitcoin e o Ethereum.

“A moeda digital revoluciona a emissão de dinheiro. O papel físico deixa de existir”, resume em poucas palavras Ahmed Sameeer El Khatib, coordenador do Instituto de Finanças da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP), de São Paulo (SP). “Ela elimina o papel e qualquer tipo de intermediário financeiro que exista entre uma pessoa e uma empresa.”

Ou seja, teoricamente elimina taxas sobre as transações, que são feitas diretamente entre os usuários, sejam entre pessoas físicas ou jurídicas.

Isso significa que, ao contrário das nossas moedas atuais, um possível real digital só existiria em formato de código binário e atrelado a uma chave criptográfica que identifique quem é o dono daquele valor. O impacto mais direto e óbvio é sobre a emissão feita nas chamadas “casas da moeda”, cuja atividade inclui não só a impressão de cédulas e a cunhagem de moedas como também a criação de medidas de segurança que evitem falsificações, por exemplo.

Mas uma coisa continua inalterada na moeda digital: a emissão é centralizada por uma autoridade nacional. No nosso caso, o Banco Central do Brasil.

Embora exista um sistema de criptografia que garanta a validade e a segurança da moeda digital (assim como no Bitcoin, que usa blockchain), ela é centralizada. Só pode ser emitida pela autoridade monetária, diferente das criptomoedas, emitidas por entes privados e de forma pulverizada.

“Essa centralização tem o lastro e o aval da autoridade monetária do país e uma relação direta com a moeda corrente, o que tende a trazer vantagens em termos de transacionamento (ou seja, ser mais amplamente aceita) e liquidez. Isso pelo menos a princípio”, explica Luciano Sobral, diretor executivo da Capco, consultoria de gestão e tecnologia dedicada ao setor financeiro.

O nome técnico das moedas digitais é CBDC (sigla em inglês para moeda digital do Banco Central), lembra El Khatib, deixando claro a necessidade de uma autoridade monetária emissora. “O real digital tem um lastro, essa é diferença”, diz, referindo-se também a correspondência entre moeda digital e física. Ou seja, ao menos em teoria um real físico vale o mesmo que um real digital.

Experiência e pioneirismo chinês

Uma coisa é certa sobre as moedas digitais: elas são muito mais cercadas de dúvidas do que de certezas. Se as criptomoedas soam como coisa nova mesmo estando por aí há algum tempo, foi só esse ano que as CBDCs se tornaram notícia. Isso porque desde abril o Banco do Povo da China está testando o yuan digital em projetos piloto.

Estão sendo escolhidos 500 mil consumidores de 11 regiões do país asiático. Os elegíveis podem baixar um aplicativo nos celulares que funciona como uma carteira digital premiada com 55 yuans – o equivalente a mais ou menos R$ 45. Esse dinheiro pode ser usado para fazer compras (de itens reais, é claro) em lojas autorizadas. Até aqui tem sido um sucesso, segundo o próprio governo chinês.

“Até o momento é o projeto mais avançado e há indicações que a autoridade chinesa quer ter um acompanhamento próximo da questão”, diz Sobral. “Eles contam também com o fato de que a maior parte dos pagamentos no país já é digital e feita via celulares, o que poderia trazer vantagens na transição para a moeda digital.”

Essa iniciativa coloca a China como pioneira no que diz respeito à adoção de CBDCs no mundo. Isso inclusive acendeu o alerta de outras potências mundiais: o banco central dos EUA (Federal Reserve, ou simplesmente Fed) anunciou esta semana que estuda a adoção de um dólar digital.

Já o governo do país – incluindo o Pentágono e o Departamento de Estado, entre outros órgãos federais – anunciaram que estão investigando os planos da China. O grande medo é que seja uma tática para derrubar o dólar da posição que ocupa mundialmente desde a década de 1970 como moeda de reserva global, segundo a agência Bloomberg, citando fontes próximas ao presidente Joe Biden.

Outros países também já declaram estudar o tema, inclusive o Brasil, que de certa forma se torna pioneiro. “Este movimento [do Banco Central brasileiro] está em fase bastante inicial, mas achamos importante que o Brasil esteja atento a essa nova tendência global, na qual mesmo países mais desenvolvidos em termos de digitalização da economia ainda estão em etapas preparatórias”, diz Sobral.

O professor El Khatib concorda, e diz que o que está sendo desenhado pelo BC, somada a uma nova lei cambial em tramitação no Congresso Nacional e que reduz barreiras para transações com moedas estrangeiras, são “um baita de um avanço”.

Impactos previstos (ou não)

O grande problema das moedas digitais é que, na prática, ninguém sabe quais serão os impactos sobre o sistema bancário e a própria economia dos países que as adotem de forma massiva. Especialistas acreditam que deve haver impacto sobre as empresas que atuam como intermediários de pagamento e, claro, os grandes bancos, que simplesmente deixariam de ser necessários e precisariam encontrar um novo papel.

“De cara muitas empresas locais e internacionais seriam descartadas. É uma consequência caso a população inteira tenha acesso, por isso as coisas não serão tão imediatas”, conjectura El Khatib a respeito do Brasil. Nesse sentido a China tem vantagens, já que o Banco Popular tem controle elevado sobre a economia do país, diferente de sistemas financeiros como o norte-americano e o brasileiro.

Não por acaso esta semana o governo de Pequim baniu do país todas as criptomoedas estrangeiras, como forma de promover o yuan digital. O que levanta uma dúvida: as moedas digitas de alguma forma competem com o Bitcoin e suas congêneres?

“Entendemos que não, mas certamente é um grande concorrente”, especula Sobral. “Temos que levar em conta que uma moeda nacional deverá endereçar questões de câmbio em negócios internacionais e as criptomoedas atuais tendem a ter um caráter transnacional.”

Há outro problema nas criptomoedas: elas são muito voláteis e variam conforme os ânimos (e desânimos) do mercado. Por outro lado, lembra El Khatib, elas dão maior liberdade aos usuários, enquanto as CBDCs estão sujeitas ao monitoramento absoluto da entidade emissora – o que no caso de um governo autoritário pode ser um grande problema para os cidadãos.

E mesmo medidas de segurança não são totalmente capazes de acabar com o risco de fraudes. Outro desafio: fazer com que a população entenda o conceito de moeda digital e, principalmente, a adote. O que pode ser um imenso desafio no Brasil, em que boa parte da população é desbancarizada e não tem acesso à internet, entre outros aspectos.

“O que determina a força de uma moeda é se as pessoas vão adotá-la ou não”, diz o professor da FECAP.

Vai demorar?

Se as diretrizes anunciadas essa semana pelo Banco Central brasileiro balizam a intenção do país em ter uma alternativa digital ao real, ninguém sabe bem ao certo quando isso de fato ocorrerá. El Khatib considera que foram bem definidos o lastro da autoridade do BC, mas os pormenores ainda deverão ser bastante debatidos entre os interessados, inclusive aqueles potencialmente prejudicados, como é o caso dos bancos tradicionais.

“É necessário reunir os agentes. Seria inconcebível acabar com a figura do banco, e no limite haveria um esvaziamento do sistema bancário como um todo”, diz o professor da FECAP. “Um projeto piloto se torna necessário.”

No entanto o especialista acredita que ainda levarão anos para que algum projeto com o real digital seja posto em curso, uma vez que “não é um processo muito simples”. Além disso o projeto não deve ser prioridade para o Banco Central, cuja agenda dos próximos meses inclui lidar com os efeitos econômicos da pandemia de COVID-19 e um processo eleitoral em 2022.

Sobral, da Capco, se arrisca um pouco mais. “Poderá ocorrer antes do que esperaríamos, ou seja, um horizonte inferior a cinco anos para os primeiros testes”, arrisca. “Creio que o PIX e o Open Banking são provas que o mercado financeiro brasileiro está maduro para projetos arrojados e aberto para inovações.”

Fonte: IT Forum

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